20.1.08

ASCE no enlace multicultural































A minha comunicação realizada no âmbito da iniciativa "Encontros de Inverno 3", da Escola Superior de Educação de Coimbra, organizado pelos alunos finalistas, em 12 de Janeiro de 2008. Conforme prometido, edito-a no blog.

Escola Superior de Educação de Coimbra
Encontros de Inverno III – Diálogo Intercultural: desafios à Animação Socioeducativa
Painel: (Des)enlaces entre povos. Coimbra, 12 Janeiro 2008

Painel: (Des)enlaces entre povos
Título: A Animação Sociocultural e Educativa no enlace multicultural
(comunicação)
Autor: Mário Montez

Resumo
Tendo em conta o mote: o enlace ou o desenlace entre povos, e o contexto do Diálogo Intercultural e de Animação Socioeducativa, considerei oportuno partilhar dois aspectos: 1) o desenlace de uma prática de intervenção; 2) uma reflexão em tom de desafio para futuras perspectivas de intervenção. Isto é: uma comunicação sobre uma intervenção de ASCE num bairro africano de Lisboa; e uma reflexão, em tom de desafio, sobre o papel da Animação portuguesa no renovar das relações com os países da Lusofonia. Por um lado participando nas suas capacitações, reconstruções e evoluções, por outro, aprendendo a viver a multiculturalidade, promovendo o Diálogo Intercultural.

Palavras-chave: Diálogo Intercultural; Multiculturalidade; Animação Sociocultural e Educativa;


Introdução

O enlace da ASC no Diálogo Intercultural, em Portugal acontece nas experiências e práticas dos animadores e no campo de partilha da sua intervenção enlaçada com os povos, comunidades e grupos étnicos e culturais, residentes neste nosso (de todos) país à beira-mar plantado. O enlace ou desenlace entre os povos surge, ou deveria surgir, precisamente no lugar em que esta nossa terra encontra o mar. É deste cais de embarque que velejamos na partilha de dois aspectos sobre a ASCE e o Diálogo Intercultural:
- Uma prática de intervenção;
- Uma reflexão (ou desafio) sobre a ASCE e o Diálogo Intercultural.
A prática apresentada é espelho de várias outras similares, de intervenção em comunidades africanas diversificadas por dentro e homogéneas para quem as olha de fora. Uma experiência multicultural em Portugal, na qual o “estrangeiro” foi o animador português. Uma prática que prova o ensejo de re-enlace entre povos que durante séculos se viram (sem juízos de valor) enlaçados e depois, desenlaçados. Uma prática que tentou o enlace de uma comunidade excluída com a sociedade dominante.
A reflexão apresentada resulta num desafio para renovar enlaces, desenlaçando as relações de que há 35 anos nos esquecemos, e que ficaram do outro lado do mar.

Reinventar os espaços, criativizar e renovar as relações

Entre 2002 e 2003 participei como técnico de Animação Sociocultural num projecto governamental, em intervenção num bairro da periferia de Lisboa, habitado por gente que veio de África nas décadas de 1970 e 80. Uma população de mais de 3000 pessoas, maioritariamente cabo-verdiana, que, identificados como africanos, não eram (alguns) menos portugueses do que eu e os meus colegas. Esta intervenção contemplava a existência de uma figura de Mediador Jovem Urbano, como elemento da equipa. Uma estratégia que visava a aproximação do projecto à comunidade, procurando agir para e com os grupos deste bairro, nas suas diversas capacitações para a inclusão social. O território era a Azinhaga dos Besouros, na Pontinha. um território fronteiriço entre três concelhos: Lisboa, Odivelas, Amadora. Por isto e pela sua natureza problemática, uma verdadeira terra de ninguém.

Andar no bairro era mergulhar por completo numa experiência cabo-verdiana, ainda que numa zona pobre do arquipélago. Ali, por detrás da primeira paisagem que nos aflige, reencontrei os cheiros, os sons, as falas, os sinais, símbolos, e hábitos com que tinha contactado anos atrás no Mindelo e em Santo Antão. Neste bairro, tão agradável quanto tenebroso, tão esquecido e tão lembrado; amado e odiado, por uns e outros, nós, os “portugueses de gema” éramos os mais estrangeiros. Por isso, o diálogo era imprescindível para desenvolver acções que, para lá dos objectivos técnicos (a nossa razão de ali estar) eram necessárias para trabalhar a participação da comunidade nos seus processos grupais e individuais de inclusão social. Coisas simples como as crianças irem à escola, a higiene diária e outras necessidades básicas, faltavam, para alguns, naquele espaço comum.

Efectivamente, foi sobre o espaço que se evoluiu. Os espaços existem para e pelas pessoas. E já existiam antes da Animação. O reinventar dos espaços e a construção de relações baseadas na tolerância e na compreensão das formas de estar pessoais e comunitárias, ao mesmo tempo da assertividade nas acções e a exigência de que a multiculturalidade fosse uma via de dois sentidos, foi o sucesso da experiência. Nunca como gostaríamos, é certo. Mas a Animação nestes contextos não se faz por gostos, faz-se pelo que é possível fazer, lembrando-nos que não é feita para nós mas sim com todos.

A transformação dos espaços de aprendizagens informais – dos grupos de referência “negativos”, por espaços de educação não-formal, liderados pelos mesmos grupos tendo agora em vista novos objectivos, foi o factor que diferenciou, a meu ver, a nossa intervenção de outras anteriores. A ASALA, era um espaço que os jovens queriam utilizar; transformou-se no Clube de Jovens. A Mansão era um espaço de vivências mais veteranas de consumos, jogo e negócio entre jovens; ficou assim mas abriu-se acesso na rua para a passagem de pessoas. O Clube foi um espaço que em conjunto “defendemos” da demolição pelo município, para ser transformado em lugar de festas de um outro grupo de jovens com diferentes objectivos. O Esconderijo dos AZARAMAFAT nunca foi descoberto (pensam eles) mas sempre encorajado como espaço próprio e íntimo, de descobertas a que os jovens têm direito. No meio disto, os grandes dealers e as pessoas influentes da comunidade participaram na reconstrução de espaços e momentos, e na construção de um processo de realojamento que em breve se faria. Pelo meio, a configuração de um grupo de jovens, com saídas de conhecimento para fora do bairro e um programa de desenvolvimento de competências pessoais e sociais que os levou a experimentar profissões, desportos, e reflectir sobre as expectativas que tinham das duas vidas futuras. Um longo caminho que só em 2006 (três anos depois) se consolidou.

No desenrolar do projecto aconteceram, em ambos os lado, aprendizagens sobre o Eu e os Outros. Apreciaram-se os bolinhos da Mizi e explicou-se-lhe porque o filho não era contemplado no realojamento; e porque deveria aceitar a cor do hall da nova casa. Valorizaram-se os espaços de ócio e “desocupação”; os bancos improvisados; o kizomba e o hip-hop crioulo; os salgadinhos da jovem Didita e a venda que ela fazia pelo bairro. Ao mesmo tempo encorajaram-se os investimentos escolares junto dos jovens e dos pais. Levaram-se os problemas do bairro à Junta de Freguesia e à Polícia, e encontraram-se algumas soluções. Aprendemos passos de dança africana e como uma festa pode realmente ser organizada sem organização aparente. Entrámos nas casas e apreciámos os símbolos, e discutimos opiniões. Trocámos, entre nós, valores de uma cultura por outros de outra, e encontrámos espaço e tempos para coexistirem.

A aprendizagem deste processo leva-me a reflectir sobre as relações que Portugal e os portugueses têm com os países africanos, em particular, e com os países lusófonos, em geral. Com efeito, a guerra colonial veio pôr fim não só a um conjunto de vivências colonialistas mas também a uma relação de 500 anos de relacionamento. A emergência de uma evolução nesta relação nunca deveria ter sido conflituosa mas sim de entre-ajuda na consolidação de verdadeiras democracias, aproveitando as (também) boas relações humanas efectivadas ao longo de séculos. A retirada abrupta de Portugal do “Ultramar” para uma moderna viragem para a Europa, próspera e democrática, virou as costas à relação de Portugal com África, e também com o Brasil e Timor. Desta fase lembro o estigma, que ainda hoje perdura, em relação às sucessivas imigrações africanas, e depois as brasileiras, independentemente de trazerem operários ou dentistas. Aceites, eram apenas as personagens das telenovelas. Uma prova irrefutável de um Portugal mal agradecido, xenófobo e mal preparado, sem visão, para viver a sua “nova” Europeidade, enquanto país à beira mar plantado. Sem perceber que um dos contributos de Portugal é, realmente o Mar, a relação que temos com ele e com os povos do outro lado.

É, pois esta situação de país Atlântico “onde a terra acaba e o mar começa” que nos deverá permitir, a partir de agora virarmo-nos novamente para onde vivemos a nossa multiculturalidade, mostrando, através de metodologias de Animação Sociocultural e Educativa que é possível construir um outro mundo. Um mundo de Paz. Para quê a Multiculturalidade e o Diálogo Intercultural senão para a edificação de uma Paz global? Nesta lógica, mas noutro contexto, é também desafio o diálogo de Portugal com Espanha e a construção de redes Ibéricas para o desenvolvimento social. Como viver o Diálogo Intercultural se não dialogarmos com o nosso vizinho? Escusado será enumerar alguns dos ganhos que Portugal tem na relação com Espanha – não de subserviência mas de diálogo e de parceria.

Voltando à questão atlântica, e aproveitando a deixa sobre parcerias: O desafio da Animação Sociocultural e dos profissionais que a desenvolvem passa, hoje, indiscutivelmente, pela vivência de um Portugal Europeu. Mas um Portugal Europeu que possibilite à Europa o que mais nenhum país consegue possibilitar: As parcerias e relações privilegiadas com África e Brasil (este último como uma das futuras potências mundiais, onde no campo social e dos Direitos Humanos tanto temos a colaborar, como na área da educação temos a aprender). Abrir a Europa ao Diálogo intercultural não é mais do que aproveitar a situação geográfica e Histórica de Portugal, e uma possibilidade de provar que não se cometem os mesmos erros duas vezes. Uma rota com vento de bombordo aguarda os novos e as novas profissionais da Animação Sociocultural, para um trabalho de reconstrução e enriquecimento multicultural. Assim, de uma forma empreendedora, re-enlaçamos laços desenlaçados, num futuro de Diálogo Intercultural.

1 comentário:

blogetea07 disse...

Olá!
Nãp posso deixar passar a oportunidade para lhe dar os parabéns pela interessante comunicação feita nos encontros de inverno. Não só pelo interesse mas pela pertinencia no que diz respeito à actividade do animador.
Aproveito, igualmente, demonstrar a minha satisfação e entusiasmo que as suas aulas originaram e pelo "alargamento" das perspectivas.
obrigado e bem-haja.

Carina Francisco